Penal

Pode o condutor de um veículo se negar a realizar o chamado “teste do bafômetro”? Com o advento da Lei n.º 13.281 de 4 de maio de 2016, uma série de modificações foram realizadas no Código de Trânsito Brasileiro (CTB) – Lei n.º 9.503 de 23 de setembro de 1997. Dentre elas, a inserção do art. 165-A, que prevê sanções administrativas ao condutor do veículo que recusar-se a ser submetido a teste, exame clínico, perícia ou outro procedimento que permita certificar influência de álcool ou outra substância psicoativa.

O art. 165, já existente no CTB, apenas mencionava as sanções impostas àqueles que fossem flagrados conduzindo seu veículo sob a influência de qualquer substância psicoativa, deixando margem para quais seriam os meios utilizados para provar tal influência. Dispõe o art. 165 do Código de Trânsito Brasileiro:

Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:

Infração – gravíssima;

Penalidade – multa (dez vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses.

Medida administrativa – recolhimento do documento de habilitação e retenção do veículo, observado o disposto no § 4o do art. 270 da Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997 – do Código de Trânsito Brasileiro.

Parágrafo único. Aplica-se em dobro a multa prevista no caput em caso de reincidência no período de até 12 (doze) meses.

Diante disso, muito se discutia sobre a utilização do etilômetro, conhecido popularmente como teste do bafômetro, tendo em vista que o condutor não era obrigado a fazer o mesmo.

O novo artigo inserido passou a ter a seguinte redação:

Art. 165-A. Recusar-se a ser submetido a teste, exame clínico, perícia ou outro procedimento que permita certificar influência de álcool ou outra substância psicoativa, na forma estabelecida pelo art. 277:

Infração – gravíssima;

Penalidade – multa (dez vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses;

Medida administrativa – recolhimento do documento de habilitação e retenção do veículo, observado o disposto no § 4º do art. 270.

Parágrafo único. Aplica-se em dobro a multa prevista no caput em caso de reincidência no período de até 12 (doze) meses.

Destarte, o condutor que recusar-se a realizar qualquer das condutas acima mencionadas terá uma multa aplicada em seu desfavor (em caso de reincidência dentro do período de doze meses aplica-se o valor da multa em dobro), a suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses e ainda terá o seu documento de habilitação recolhido e seu veículo retido.

Em uma pequena análise sob a luz da Constituição Federal, vislumbra-se a inconstitucionalidade do referido artigo, isto porque tal previsão fere garantias constitucionais. O art. 5º, inciso LXIII da Magna Carta traz o princípio da não-autoincriminação, dispondo que ninguém é obrigado a se auto-incriminar ou a produzir provas contra si mesmo.

Conforme art. 5º, LXIII da Constituição:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[…]

LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado.

Temos, ainda, a mesma previsão no art. 186 do Código de Processo Penal:

Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas.

Além da previsão no direito pátrio, tal princípio recebe proteção na Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8º, 2, “g”), bem como no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (art. 14, 3, “g”), dos quais o Brasil é signatário.

Vejamos:

Art. 8º da Convenção Americana de Direitos Humanos – Garantias Judiciais:

  1. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa.  Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
  2. g) Direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada;

E ainda:

Art. 14 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos:

(…)

  1. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualmente, a, pelo menos, as seguintes garantias:

(…)

  1. g) De não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.

Diante de uma conduta ilícita, cabe ao Estado por meios lícitos produzir as provas desfavoráveis ao agente que praticou tal conduta, não podendo ser o mesmo coagido a fazer prova contra si.

O direito a não-autoincriminação possui considerável valoração no que tange as provas que necessitam intervenção corporal do acusado. Isso faz com que exista a possibilidade do mesmo negar-se a colaborar com a produção da prova.

Deve-se levar em consideração que conforme preceitua o art. 5º, §3º, da Constituição, os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados com o quórum estabelecido, serão equivalentes às emendas constitucionais, e em se tratando de hierarquia de normas, a Constituição está acima de todas as leis, devendo ser respeitada e não podendo ser contrariada por leis de hierarquia inferior.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

  • 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

Além do princípio da não-autoincriminação, a Constituição nos traz outro princípio muito importante em seu art. 5º, inciso LVII, o princípio da presunção de inocência.

O princípio da presunção da inocência é um princípio jurídico de ordem constitucional, aplicado ao direito penal, que estabelece o estado de inocência como regra em relação ao acusado da prática de infração penal.

A Constituição assim dispõe:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

Isso significa dizer que somente após um processo concluído (aquele de cuja decisão condenatória não mais caiba recurso) em que se demonstre a culpabilidade do réu é que o Estado poderá aplicar uma pena ou sanção ao indivíduo condenado.

Por essa razão, o princípio constitucional da presunção de inocência é considerado um dos mais importantes institutos do ordenamento jurídico, garantindo o exercício da jurisdição.

O Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre o tema nos seguintes termos:

EMENTA: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. IMPOSSIBLIDADE DE SE EXTRAIR QUALQUER CONCLUSÃO DESFAVORÁVEL AO SUSPEITO OU ACUSADO DE PRATICAR CRIME QUE NÃO SE SUBMETE A EXAME DE DOSAGEM ALCOÓLICA. DIREITO DE NÃO PRODUZIR PROVA CONTRA SI MESMO: NEMO TENETUR SE DETEGERE. INDICAÇÃO DE OUTROS ELEMENTOS JURIDICAMENTE VÁLIDOS, NO SENTIDO DE QUE O PACIENTE ESTARIA EMBRIAGADO: POSSIBILIDADE. LESÕES CORPORAIS E HOMICÍDIO CULPOSO NO TRÂNSITO. DESCRIÇÃO DE FATOS QUE, EM TESE, CONFIGURAM CRIME. INVIABILIDADE DO TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. 1. Não se pode presumir que a embriagues de quem não se submete a exame de dosagem alcoólica: a Constituição da República impede que se extraia qualquer conclusão desfavorável àquele que, suspeito ou acusado de praticar alguma infração penal, exerce o direito de não produzir prova contra si mesmo: Precedentes. 2. Descrevendo a denúncia que o acusado estava “na condução de veículo automotor, dirigindo em alta velocidade” e “veio a colidir na traseira do veículo” das vítimas, sendo que quatro pessoas ficaram feridas e outra “faleceu em decorrência do acidente automobilístico”, e havendo, ainda, a indicação da data, do horário e do local dos fatos, há, indubitavelmente, a descrição de fatos que configuram, em tese, crimes. 3. Ordem aprovada. (HC 93916, Relator (a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 10/06/2008, DJe-117 DIVULG 26-06-2008 PUBLIC 27-06-2008 EMENT VOL-02325-04 PP-00760 RTJ VOL-00205-03 PP-01404).

Sendo assim, o condutor do veículo não poderá sofrer sanção administrativa pura e simplesmente pela recusa em realizar testes e exames, devendo prevalecer a presunção de inocência diante da ausência de prova de utilização de substâncias psicoativas.

Levando em consideração os argumentos acima expostos, tem-se que o novel art. 165-A do Código de Trânsito Brasileiro inserido pela Lei n.º 13.281 de 4 de maio de 2016 padece de inconstitucionalidades, tendo em vista que confronta diretamente o artigo 5º da Constituição Federal e tratados e convenções internacionais que dispõe sobre direitos humanos, dos quais o Brasil é signatário.

Diante da vedação constitucional de não produzir provas contra si mesmo e do princípio da presunção de inocência, descabe ao Estado aplicar qualquer sanção administrativa ao condutor que se recusar a realizar qualquer tipo de teste ou exame, devendo o erro legislativo ser suprido mediante nova alteração legislativa, ou mediante a competente ação no Supremo Tribunal Federal.

Referências

BARBOZA, Hudson. A inconstitucionalidade do novel artigo 165-A no Código de Trânsito Brasileiro. Disponível em: <https://hudsonbarboza.jusbrasil.com.br/artigos/334570095/a-inconstitucionalidade-do-novel-artigo-165-a-no-codigo-de-transito-brasileiro>. Acesso em 24/09/2019.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 93916/PA. Relator: Ministra Cármen Lúcia. Data de Julgamento: 10/06/2008. Primeira Turma. Disponível em: https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/752966/habeas-corpus-hc-93916-pa. Acesso em: 24/09/2019.

CUNHA, Maria Eduarda Gomes. Inconstitucionalidade do art. 165-A da Lei 13.281/2016. Disponível em: <https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/46845/inconstitucionalidade-do-artigo-165-a-da-lei-no-13-281-2016>. Acesso em 21/09/2019.

GOMES, Ademar. Novo artigo do Código de Trânsito Brasileiro fere a Constituição brasileira. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2016-mai-10/ademar-gomes-artigo-codigo-transito-fere-constituicao>. Acesso em 24/09/2019.

OLIVEIRA FILHO, Alaor Carlos de. A (in)constitucionalidade do art. 165-A do Código de Trânsito Brasileiro em face do direito a não-autoincriminação. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/67769/a-in-constitucionalidade-do-art-165-a-do-codigo-de-transito-brasileiro-em-face-do-direito-a-nao-autoincriminacao/1>. Acesso em 21/09/2019.

 

 

FERNANDO MALLON é advogado com especialização em Direito Municipal, sócio do MALLON & CÓRDOVA ADVOGADOS ASSOCIADOS e professor das cadeiras de Direito Administrativo I e II da Univille – Universidade da Região de Joinville – Campus de São Bento do Sul/SC.

LEO MALESCHICK MAFRA é aluno de graduação do Curso de Direito na Univille – Universidade da Região de Joinville – Campus de São Bento do Sul/SC e estagiário do MALLON & CÓRDOVA ADVOGADOS ASSOCIADOS.